Aspectos Teóricos da Comunicação Digital
quarta-feira, 7 de maio de 2008
A era da interatividade
Odille Fillion
do "Le Monde"
Ex-colaborador de Marshall McLuhan, diretor do Programa McLuhan na Universidade de Toronto, no Canadá, desde 1984, Derrick de Kerckhove discute na entrevista abaixo as relações entre arte e ciência.
Para Kerckhove, a arte "tem a capacidade de nos explicar o mundo na medida em que ele é transformado pela tecnologia, para que possamos viver plena, individual e coletivamente".
Qual é a relação entre a arte eletrônica e o mundo científico?
Muitos dos chamados artistas eletrônicos são "artistas engenheiros" ou "imagineers", como dizem os anglo-saxões. Para enfrentar as novas tecnologias e serem capazes de expor sua dimensão ou seu impacto humano, eles são obrigados a se iniciar nas ciências e técnicas eletrônicas e numéricas. A arte é em geral desconsiderada pela ciência, tratada como uma aproximação pura e simples. Se costumo evocar os princípios de Frieden ou de John Wheeler, é para reaproximar o tema da incerteza na física daquilo que lhe é associado. A arte poderia colher os benefícios dessa nova incerteza no mundo científico.
Eu acredito que, longe de ser uma aproximação, a arte tem um valor cognitivo fundamental e que, no tempo de vida que nos cabe, a arte tem a capacidade de nos explicar o mundo da maneira pela qual ele é transformado pela tecnologia, para que possamos viver plena, individual e coletivamente.
É interessante, sob essa ótica, comparar as teorias da física com as problemáticas específicas da arte atual, notadamente as da interatividade. A interatividade é uma espécie de condição de participação do usuário que, por ocorrer, modifica o objeto da interação, exatamente como enunciou Werner Heisenberg (1901-1976) em sua lei da física quântica, ou seja, de que nesse domínio todo fenômeno observado sofre os efeitos da observação. Na física quântica, toda relação com a observação humana é "interativa".
Esse papel revelador do artista lhe parece essencial?
Fundamental. Marshall McLuhan, com quem trabalhei por dez anos, foi o primeiro a dizer que o artista é o primeiro intérprete do impacto da tecnologia sobre os seres humanos. Portanto no Instituto McLuhan estudamos o impacto da tecnologia sobre as práticas culturais e constatamos que os artistas perceberam o impacto da tecnologia antes de as empresas o fazerem. No caso da Internet, as empresas superaram os artistas e conquistaram grande avanço quanto à interpretação das possibilidades da Web...
Por que os verdadeiros artistas talvez sejam os programadores?
Por causa disso temos, em Toronto, um grupo de engenheiros que trabalha com artistas a fim de que estes compreendam como funciona a interatividade: um roboticista, um engenheiro, um biólogo, um músico, todos participam do grupo e se tornaram, como Norman White ou David Robeky, artistas praticantes. Nós, desde 1983, temos organizado em caráter regular seminários sobre a relação entre arte e ciência e desempenhamos de maneira bastante convincente um papel de acelerador nesse domínio.
Quais são os objetivos do Programa McLuhan?
Trata-se na verdade de um pequeno centro de pesquisa vinculado à Faculdade de Ciências da Informação, no qual temos diferentes temas de investigação, como o ciberespaço e o governo, arquitetura da Web e arquitetura de redes, aplicativos Linux etc.
Nós desenvolvemos também pesquisas sobre inteligência coletiva e devemos lançar em breve um software de administração de documentos em tempo real, com comentários anexados imediatamente e indexação contínua de conhecimento via Web. Pode-se ler um texto, percorrê-lo, graças a um índice de hipertexto, e não somente fazer comentários a outras pessoas que podem ter acesso a essa mídia, mas também avaliar os comentários e marcar essa avaliação para colocá-la à disposição de outros participantes em tempo real.
O que me parece mais apaixonante é a conectividade entre os seres e a nova dimensão cognitiva, a exteriorização do nosso pensamento: existem campos de observação muito ricos nos quais a arte desempenha papel essencial no momento, sobretudo quanto ao programa McLuhan, que vem passando por um novo período de desenvolvimento especular e deve instalar novas antenas em Nápoles e em Tóquio.
Suas análises permitiram que se tornasse conselheiro de sociedades internacionais, como o grupo multinacional francês Vivendi.
Sim, sei muito bem que os artistas se opõem à globalização porque acreditam que ela terá um efeito acelerador sobre a mundialização. Compreendo que sejam contra a mundialização, mas os artistas deveriam ser os primeiros a entender que a globalização não é só um fenômeno econômico, mas mais fundamentalmente um fenômeno psicológico.
Eles se tornaram numerosos a ponto de nos fazer compreender que a escala mudou. Não estamos mais no mundo criado na Renascença com a invenção da perspectiva. Somos hoje seres globais porque estamos todos integrados à imagem via satélite do planeta que vemos todas as noites na TV como imagem normal. Essa imagem pertence à nossa época tanto quanto a Internet, que nos coloca em interação com o mundo quando e onde queremos. Eu envio perto de 30 mensagens via Internet por dia, e é meu ser que se deposita assim na superfície do planeta.
Temos, ao mesmo tempo, um novo poder de ação e uma nova percepção do mundo. Trata-se de uma etapa psicológica para o homem e será importante concretizá-la por meio de arquiteturas bastante simbólicas. Empresas como a France Télécom podem facilmente criar links que coloquem em relação simultânea por videoconferência todas as cidades do mundo. Criar links dessa natureza, da mesma forma como se criam parques públicos, será muito fácil e nada dispendioso e permitirá um acesso melhor a essa noção psicológica da globalização, noção melhor do que a de uma mundialização econômica global, que assusta, e com razão, a todos.
Ninguém pode ignorar o que se passa na Argélia ou no Afeganistão porque houve uma implosão extraordinária do mundo ao nosso redor. Por isso essa nova espécie de arquitetura global que utiliza a extensão eletrônica dos espaços físicos pode também ajudar os países em via de reconstrução, como a Sérvia e o Timor Leste, a se sentirem mais integrados a uma sociedade comum.
Mas a indústria e, portanto, a mundialização, como o senhor sinalizou, é extremamente rápida e avança por todos caminhos de pesquisa que se possa empreender.
Sim, a indústria é veloz e, por oposição, o corpo discente das universidades desenvolve uma resistência pouco construtiva ao estudo e desenvolvimento de práticas associadas à nova tecnologia. Pode-se perguntar, legitimamente, se não será por meio da indústria que emergirão novas práticas colaborativas e se essas práticas já não foram adotadas pelas novas gerações, o que remete à questão das velhas práticas hierárquicas e rígidas. Em inglês, eu diria "respons-ability" (capacidade de resposta) e "responsibility" (responsabilidade). Isso é difícil de traduzir, mas estou convencido de que as novas tecnologias caminham em companhia de um novo ambiente humano onde a consciência do outro será reforçada.
Tradução de Paulo Migliacci.
Fonte: Folha de São Paulo - Caderno Mais - 09.12.01
Telefone celular será o computador popular do futuro
"Esqueçam o laptop de US$ 100 de Negroponte", proclama cientista canadense pai da psicotecnologia
| Bruno Fernandes/Folha Imagem | O pensador Derrick de Kerckhove, que realizou uma série de palestras no Brasil no início deste mês |
RODOLFO LUCENA
EDITOR DE INFORMÁTICA
D OUTOR em sociologia da arte e em língua e literatura francesa, Derrick de Kerckhove, canadense nascido na Bélgica em 1944, dirige há mais de 20 anos o Programa McLuhan em Cultura e Tecnologia da Universidade de Toronto. Ele esteve no Brasil no início do mês para uma série de palestras e falou à Folha, em São Paulo. A seguir, os principais trechos da entrevista.
FOLHA - O senhor inventou o termo psicotecnologia. O que é esse conceito e como chegou a ele?
DE KERCKHOVE - Foi pelas relações com a linguagem. A linguagem está relacionada com nossa mente, com nossos pensamentos. Tem um poder próprio, de ação, de meditação, de ordenação de idéias, quando é escrita. Toda tecnologia de suporte à linguagem é uma psicotecnologia. É uma tecnologia que, via linguagem, conecta o indivíduo, o interior e o exterior. A psicotecnologia é, predominantemente, uma tecnologia da linguagem. E cada vez que muda o suporte para a linguagem, muda a sensibilidade do usuário e da cultura.
FOLHA - Como isso acontece?
DE KERCKHOVE - Um exemplo é o alfabeto, que criou o ser privado, um sentimento muito forte de si mesmo, de identidade própria. Uma diferença entre o mundo lá de fora, que era objetivo, e essa pessoa aqui, subjetiva. Foi uma mudança poderosa, pois isso não existia na tribo. Na tribo, você era parte dela, você se misturava, mesclava, obedecia aos comandos, respondia às exigências, mas não se abstraía do coletivo. Você estava sempre dentro da tribo ou da família. Na sociedade oral, não havia uma individualidade muito forte, uma referência sobre si mesmo.
Com a psicotecnologia, você tem esse sentimento de forma muito forte. E com a internet você tem o maior casamento mítico de todos, o casamento da velocidade máxima com a complexidade máxima: a complexidade da linguagem e a velocidade da luz. Nós falamos com a velocidade da luz. As psicotecnologias estão constantemente emergindo...
Seja o telefone celular, que concentra toda a história das comunicações em uma pequena máquina que você leva no bolso, ou seja a altíssima complexidade dos supercomputadores ou dos computadores quânticos, que virão no futuro... Ou qualquer software, ou a web 2.0: você pode multiplicar a inteligência conectada na web 2.0 em qualquer configuração. Pode ser a Wikipédia, que é uma forma, ou o del.icio.us ou o furl, que são softwares sociais.
Qualquer variedade de interação humana, software, isso é psicotecnologia. Um blog é uma psicotecnologia, é toda uma nova forma de conectividade entre as pessoas, pois você não apenas coloca lá seus pensamentos e idéia, mas o blog funciona com os comentários dos visitantes... Todas essas coisas estão acontecendo mais rapidamente do que nós conseguimos absorvê-las...
Vivemos hoje a era sem fio, que é também experimentada aqui no Brasil. Pelo que eu já vi, melhor aqui do que em outros lugares do mundo, porque você tem aqui -nos hotéis, pelo menos- um acesso melhor, sem ter de passar pelos rituais exigidos na Europa. É uma sociedade muito conectada...
FOLHA - Mas apenas para pouca gente...
DE KERCKHOVE - Sim e não. Isso ainda está para ser visto. Há uma discussão hoje sobre conectar as favelas. É preciso ter uma solução, e isso poderia ser testado, pelo menos em uma delas. Sim, eu concordo que muita gente está excluída desse processo, mas é muito menos do que se pensa, se você considerar os telefones celulares. Todo mundo tem telefone...
FOLHA - Pré-pago.
DE KERCKHOVE - O futuro próximo do telefone celular é ficar mais e mais parecido com um computador. Esqueça Negroponte e seu laptop de US$ 100. O que teremos será um celular de US$ 50, de US$ 20, que vai fazer tudo o que você precisa.
Estou querendo dizer que, na verdade, não há uma divisão digital, mas sim um choque. Os dois grupos se chocam, se encontram. Sim, há enormes distâncias econômicas e sociais, muito fortes. Mas você não pode simplesmente dizer que as duas coisas são iguais. A única relação possível do mundo digital com as contradições sociais e econômicas é no sentido de melhorá-las, de reduzi-las. Além disso, as pessoas da favela, elas estão tendo acesso. Ok, é em LAN houses, mas estão lá.
FOLHA - E qual o impacto disso na vida das pessoas?
DE KERCKHOVE - Globalização. Quando você carrega o mundo em seu bolso, você é global, querendo ou não, sabendo ou não, gostando ou não. Nós estamos globalizados, nós estamos conectados com o resto do mundo. Nós já estávamos ligados pelas notícias, pela televisão, que traz as notícias do mundo para nossa sala, mostrando a chegada do homem à Lua, mostrando o mundo... Nós fomos socializados pela televisão de uma forma global, com certeza, e é por isso que McLuhan falava da aldeia global. Mas agora nós somos cidadãos globais, cidadãos do mundo. E isso é por causa dessa coisinha que carregamos no nosso bolso.
FOLHA - O cidadão não é mais passivo...
DE KERCKHOVE - De jeito nenhum, e isso tem sido de grande ajuda para a humanidade, especialmente para as sociedades mais atrasadas, para as pessoas que não sabem escrever. Essas pessoas agora podem falar pelo telefone, conversar, dar e receber notícias, podem perguntar sobre a situação do mercado na área em que eles atuam, enfim, há muita coisa que elas podem fazer.
A sociedade oral está recuperando um pouco do poder e da importância que perdeu para a sociedade letrada. E os aspectos locais são enriquecidos pela conexão global. A aldeia local, onde nós estamos, onde atuamos, trabalhamos, é enriquecida pela dimensão global. Nós funcionamos ao mesmo tempo local e globalmente, e nossa identidade está mudando, nossa sensibilidade está mudando.
FOLHA - E isso é bom?
DE KERCKHOVE - Sim, é muito positivo. O mundo está mudando, deixando de ser planejado e projetado e organizado, para ser emergente, auto-organizado... Claro que há aspectos negativos... O terrorismo é um aspecto emergente...
DE KERCKHOVE - Você tem razão, e isso é um problema, e nós teremos de enfrentar esse problema. A sua personalidade digital é cada vez menos uma propriedade sua, e mais uma propriedade do conjunto. McLuhan costumava dizer: "Quanto mais sabem a seu respeito, menos você existe". Sua persona digital escapa cada vez mais de seu controle. Você não controla sua reputação, você não controla os dados sobre você que são coletados por bancos.
McLuhan dizia que a tecnologia iria nos apagar, apagar o indivíduo e deixar tudo sob o controle do Estado ou de algum sistema regulador, um Big Brother automatizado. Essa possibilidade existe...
Mas a experiência de liberdade... Uma vez que essa idéia entra na sociedade...
Acho que nós vamos nos adaptando, vamos descobrir que podemos manter alguma coisa de nossa identidade ao mesmo tempo em que hiperconectamos. Vamos encontrar uma solução de compromisso, um meio-termo.
Já existe, entre mim e o exterior, entre público e privado. No Facebook, você está público, mas você faz dele um uso particular, ele é de seu uso particular. Isso é bom? Nós já passamos do estágio do bem e do mal.
Fonte: Folha de São Paulo - Caderno de Informática - 28.11.07